Fräulein: Grito de Mário

Gabriela Lírio Gurgel

I - Grito de Sinceridade: Arte Intransitiva?

Qual a obrigação do artista? Preparar obras imortais que irão colaborar na alegria das gerações futuras ou construir obras passageiras mas pessoais em que as suas impulsões líricas se destaquem para os contemporâneos como um intenso veemente grito de sinceridade?... (Kossovitch, 1990: 35)

        Leitor-aranha, intelectual-leitor, artista-crítico, poeta-pensador, homem-do-sonho, homem-da-vida, Mário de Andrade foi, ao mesmo tempo, múltiplo e ambíguo. Universal e regional. Deus-encarcerado, paciente, escrevia e colecionava artigos, cartas, livros. Tecia a vida com mãos frágeis prestes a explodir em algum movimento mais ríspido, crispado. Mãos contorcidas que insistiam em sublimar a dor. Para Mário, literatura era a dor sublimada. Era vida perdida em mil tentativas de nomeá-la. Era silêncio e música. Rapsódia e arrependimento. Idílio e grito de sinceridade.
        Leitor de seu tempo, ansiava por uma nova língua que representasse verdadeiramente o Brasil. Não era apenas uma questão de gramática, neologismos e invencionices; era a fala brasileira vestida, cantada, erotizada. Desrecalcar o país talvez fosse o objetivo maior do poeta que, paradoxalmente, vivia recluso, escondido - por trás de seus óculos, de suas cartas, da mesa do escritório, dos livros duplicados.
        Uma análise comparativa entre vida e obra do escritor aponta para a construção de sentidos que emergiam do vazio, da angústia, da falta de uma identificação. Mário tocava a vida na emergência da projeção de seu interior, de sua especificidade, nome, marca registrada. Era intervalo entre coisa não dita e um excesso de dizer, entre fio de comoção interrompido em objetividade crítica, entre turbilhão de desejo e ensaio responsável de intelectual-pensador. O mundo, sociedade a ser descoberta, por vezes tão visível/risível, representava o oposto diletante de sua glória mascarada, seu espasmo de loucura, suas doenças pervertidas, transfiguradas em dores de garganta, úlcera e outros sintomas físicos. Pele tocando o real, superfície porosa de incômodos, vivenciou sinceramente, e seriamente, o enjôo de seu tempo e suas próprias misérias. Do tempo e de si mesmo. Mário de Andrade se confundiu com a sua época. Misturou-se com o Brasil.
        "Não tenho a mínima reserva em afirmar que toda a minha obra representa uma dedicação feliz a problemas do meu tempo e minha terra..." (Andrade, 1974: 252). Ao analisar sua trajetória pessoal, viu-se diante de um impasse revelador do próprio movimento modernista - experimentado, de maneiras diferentes, por escritores, pintores, escultores, enfim, por artistas. A linha tênue entre fazer uma arte participativa, engajada com os movimentos políticos e, ao mesmo tempo, fazer poesia sem uma preocupação com a história presente, encerrava um dilema e um sintoma característico de toda uma geração.
        A influência das vanguardas européias que, como o futurismo, pregavam a desvinculação do passado ou, como o expressionismo, pregavam a deformação da realidade, se contrapunham a um discurso da tradição, de restauração de um passado, de um resgate da memória brasileira. "A contradição entre futurismo, no sentido europeu da palavra, e modernismo, no sentido brasileiro, já existe em 24, no momento mesmo em que os novos estão tentando impor uma estética de originalidade..." (Santiago, 1989: 107).
        A viagem dos modernistas a Minas Gerais, em 1924, ilustra esse momento importante, "não só do passado pátrio (mineiro, barroco, etc), mas do passado enquanto propiciador de uma manifestação estética primitiva (ou näive)" (Santiago, 1989: 97). Na observação de Brito Broca a excursão foi "fecunda" a todos: "...Tarsila teria encontrado na pintura das igrejas e dos velhos casarões mineiros a inspiração de muitos de seus painéis; Oswald de Andrade colheu o tema de várias poesias pau-brasil, e Mário de Andrade veio a escrever então seu admirável "Noturno de Belo Horizonte" (Santiago, 1989: 105).
        Em carta a Carlos Drummond de Andrade, datada de 10 de novembro de 1954, Mário expõe a angústia de ser homem de seu tempo, homem-da-vida para usar expressão andradiana, e homem-do-sonho. A alternância entre esses dois papéis é balizada pelo que ele classifica como sendo vaidade: "Foi preciso coragem, confesso porque as vaidades são muitas. Mas a gente tem a propriedade de substituir uma vaidade por outra..." (Andrade, 1986: 6).
         Por mais que tentasse, não conseguia definir uma moral, um juízo de valor para sua arte: "Toda a minha obra é transitória e caduca, eu sei. E eu quero que seja transitória (...) Mas que me importa a eternidade entre os homens da Terra e a celebridade? Mando-os à merda (...) A minha vaidade hoje é de ser transitório. Estraçalho a minha obra..." (Andrade, 1982: 6).
        Essa posição incômoda e, visivelmente, defensiva de quem já se sabia celebridade, somada ao desejo de ser transitório, desejo de liberdade, manteve-se ao longo de toda a vida do escritor. Em 1924, para ele, o importante não era ficar, e, sim viver: "Eu vivo. E vocês não vivem porque são uns despaisados e não têm a coragem suficiente para serem vocês", esbravejava a Drummond. A vida estava e esteve sempre ligada à idéia de fazer parte de um país. Carteira de identidade: nome, foto, assinatura, mas carimbo... nacional! Muitos anos depois, já "na rampa dos cincoenta anos" (Andrade, 1974: 254), com um "olhar" mais melancólico e não menos interessado, Mário de Andrade permanecia confuso - "Será que a liberdade é uma bobagem?" , "...será que não terei passeando apenas, me iludindo de existir?", "Vaidade, tudo vaidade..." (Andrade, 1974: 253).         Buscando ser coletivo, apesar do desejo de liberdade, Mário, no final da vida, sentia-se espectador de si mesmo, hiperindividualista. Passou a desconfiar de seu passado: "Julgava cuidar mais da vida que de mim (...) Tendo deformado toda a minha obra por um anti-individualismo dirigido e voluntarioso, toda a minha obra não é mais que um hiperindividualismo implacável!" (Andrade, 1974: 254).
        Não conseguiu ser um "político de ação", percebendo a falta em sua obra de uma maior "angústia do tempo", talvez por ter dedicado tempo demais ao homem-de-estudo, homem crítico da vida. Para Mário, este era um "paradoxo irrespirável". O valor prático da vida, a busca de respostas claras perdia-se em labirintos vazios. O desejo estilhaçava-se nos desencontros de suas pesquisas. Desejo de mais desejo em contraposição a uma auto-crítica impiedosa. Qual era afinal a função da arte? Ser social ou imprimir impressões líricas e sem conexão com a vida prática? Ser utilitário ou ser poeta? Pesquisador ou escritor? Musicólogo ou músico?
        Um olhar mais atento a sua obra capta dois momentos distintos e infinitamente repetidos: Mário queria ser e estar dos dois lados do discurso. Artista e crítico. Sujeito e objeto de si mesmo. Desejo obsessivo e incontrolável que o fazia oscilar em um movimento pendular, inclusive na sua obra: "Mário permanece oscilando entre uma poesia social, pragmatista e de combate, e uma poesia iminentemente lírica, voltada para a interioridade e o dilaceramento da alma" (Kiefer, 1994: 62).
        Alma dilacerada, extasiada, confusa, acreditava ter apenas feito "careta" para a máscara do tempo, ao invés de "esbofeteá-la" como ela merecia. Toda a sua obra e toda a sua vida entrelaçam-se no limiar de suas palavras tão precisas, de suas angústias irreconciliáveis. "Deus-encarcerado", paciente e ativo, expressão encontrada em Amar, verbo intransitivo, para caracterizar Fräulein, e que cabe perfeitamente à figura do poeta, deu grito. Rendeu-se à vida, foi mais forte, fez balanço, estatística e movimento ondulante. Sempre presente, rasgou papel, sobrevivência, história. Sinceramente...

II - Fräulein: Gemido e Urro ou a Dor de Amar sem Reticências

" O Deus soltou um gemido que nem urro"15
(Andrade, 1995: 147)

        Para Fräulein, ensinar amor é ensinar a doer. Implica falta de reticências. Não há espera de objeto, não há letra a ser traduzida. A sedução, previamente alimentada, é interrompida em frêmito. Suspensa sem luz de expectativas. É aborto, parto anunciado, combinado. Gozo que vira ira, rompante de lamentos, de incompreensão. É vazio cortante quando menos se imagina. Intervalo de absurdos, é susto que nem nascimento seguido de morte prematura. Fim de partitura, último som saindo pela pequenina fresta da janela. É sinal que aponta a porta dos fundos.
        "O começo dela é de quem recomeça" (Andrade, 1927: 53), explica, logo de início, o narrador de Amar, verbo Intransitivo. Fräulein é Elza, governanta, professora de amor contratada por Souza Costa para ensinar a Carlos, seu primogênito, uma lição de vida, apreendida com o corpo - memória que não se esquece. "Nem antipática, nem simpática: elemento" que, aos poucos, transforma-se em relógio familiar".. Alemã sem imprevistos nem escapadas, para ela "a surpresa, o inédito da vida é uma continuidade a continuar" (Andrade, 1927: 19).
        Leitora de Schiller, Goethe, Nietzsche, Shakespeare, Shopenhauer, Heine, Racine e Romand Rolland, amansa seu deus encarcerado, enfeita os gestos do homem-da-vida, com música: "Wiegenlied de Max Reger, ópus 76", entre muitas outras. É palavra e significado, como no título desse capítulo Reticências e ..., letra e símbolo, homem-da-vida e homem-do sonho.         O homem-da-vida é pragmático, direto e sabe o que quer, ou não questiona sua (in)felicidade. É verbo ser. Verbo intransitivo que, por pouco tempo, é verbo de ligação afetiva. O homem-do-sonho grita alto, incomoda com ciúmes esquisitos, inconscientes, suspirando "nas horas silenciosas de contemplação", "queixume de deus paciente encarcerado" (Andrade, 1927: 60). Mas, Fräulein, alemã de raça superior, insiste em não fraquejar. Sabe muito bem o seu dever. "Franqueza: o que pratica é isso apenas isso" (Andrade, 1927: 64). Precisava ensinar a Carlos que o dever supera prazeres da carne, apesar do berreiro do deus reclamando liberdade, atordoando dentro dela.
        Corpo imperfeito, "... maior que a média dos corpos de mulher (...) cheio nas suas partes (...) pesado e bastante sensual", "... beiços curtos, bastante largos, encarnados (...) olhos castanhos, pouco fundos (...) cabelos mudáveis!" (Andrade, 1927: 57-58), aberto à vida e fechado no instante seguinte, em um movimento de atração e retraimento contínuo. Corpo velado, "grande livro em que se inscreve a possibilidade do prazer, onde se oculta o impossível saber sobre o sexo" (Lacan, 1964-1967) . Carlos machucador deseja ler o corpo de Fräulein, "tomar seu corpo ao pé da letra" (Leclaire, 1986: 64), traduzir o que não pode ser traduzido. A professora deseja invasão, mas também ensina que ler é nunca esgotar significado. É terceira margem que se sabe sem nunca saber. castanhos, pouco fundos (...) cabelos mudáveis!"22 , aberto à vida e fechado no instante seguinte, em um movimento de atração e retraimento contínuo. Corpo velado, "grande livro em que se inscreve a possibilidade do prazer, onde se oculta o impossível saber sobre o sexo"23 . Carlos machucador deseja ler o corpo de Fräulein, "tomar seu corpo ao pé da letra"24 , traduzir o que não pode ser traduzido. A professora deseja invasão, mas também ensina que ler é nunca esgotar significado. É terceira margem que se sabe sem nunca saber.
        Aos poucos, com movimentos quase religiosos, estimula a curiosidade do aluno, observando-o com sensibilidade exacerbada e erotismo. Modo de ver através de. Percebe-o puxando, em um compasso suave, o fio de desejo do rapaz. É Mário tecendo história. É Fräulein verbo de ligação. Transitória, nunca transitiva.
        A visão do feminino em Amar, verbo intransitivo sustenta uma ambigüidade reveladora, tradutora da obra de Mário e de sua vida que, como vimos no capítulo anterior, se confudem. Imagem forte, Fräulein é mulher partida entre definições masculinas: homem-da-vida, homem-do-sonho. É prática e visceral ao mesmo tempo. Sofre mal de deus e clama por tragédia. Amar é sinônimo de sacrifício. E ela se repete continuamente. Precisa mesmo da repetição. Depois do tormento, mais lição. Aprendizado com aluno novo, aula diferente mas objetivo igual. Educar para a vida, ensinar a dor.
        O objeto de amor feminino existe sem existência, é pensamento flutuante, linha partida. É homem com óculos de aro, alemão, alto, parecido com o autor do idílio. É objeto idealizado porque desejo não é para ser vivido em tempo futuro. Carlos é objeto de amor? Exercício de sofreguidão.
         Em Amor e Medo, Mário de Andrade faz um minucioso estudo dos poetas românticos, da visão da mulher e do amor. O medo de amar é tema constante na poesia da época, com destaque para Álvares de Azevedo representante-mor do clímax de seqüestro: "mulher, só bela adormecida, de preferência adormecida de sono eterno" (Andrade, 1974: 228). Uma análise comparativa entre a crítica precisa de Mário e Amar, verbo intransitivo nos aponta um outro cruzamento. O tema escolhido, pelo autor, repetido na teoria e na ficção, continua a falar de impossibilidades. Amor com contato de pele, mas cortante também. Idílio e grito.
        A relação da personagem com a natureza, com o primitivo, traço expressionista a ser analisado no próximo capítulo, é o momento mais sublime, momento de gozo. Fräulein se sensualiza com a natureza; traço alemão, vira criança, olhar ininterrupto de maravilhamento. Emocionada, percorre o caminho da Floresta da Tijuca até alcançar o êxtase de um deus encarcerado agradecido pela liberdade. Rendida, machucada, o gozo rapidamente transforma-se em dor de ausência.         O feminino em Mário goza somente com o sublime, ou melhor, é gozado por imagens que invadem sem pedir licença, abrindo o corpo sem permissão. A alemã não é sujeito, mas exige "...verbo e complemento" (Andrade, 1927: 77) porque não entende a alma latina, necessita definições, explicações, ponto final. Contudo, é também exclamação, susto, ausência.
        Mário de Andrade construiu com Fräulein uma mulher múltipla, atravessada pela dialética de um gemido com som de urro. Gozo-lamento, deus habitando homem, autor habitando personagem. É, sobretudo, mãe de todos (Andrade, 1927: 115), daí os braços acolhedores mesmo quando cruzados. Enigma da feminilidade, sempre pronto a ser desvendado/desvelado mas, ao mesmo tempo, masculina nas ações, objetiva.
        A professora de amor sem reticências é Mário reticente sem amor, é avesso de desejo abortado, deus encarcerado urrando por fora e homem-da-vida tecendo para dentro. Tecendo histórias, reflexos de seu tempo que o escritor jura não ter esbofeteado. Fräulein é "soco na cara", linguagem interrompida que rasga papel de livro, se esvai na face, nos olhos atentos do leitor. Pedido de passagem, é dificílima de ser reiventada nessa análise, é palavra sempre por dizer. Repetição de "é...". Verbo ser. Gemido sublimado gritando eternidade. Mais uma vez, "vaidade, tudo vaidade"...

III - O Grito: de Munch à Mário; de Mário à Fräulein

" ...Os olhos dela pouco a pouco se fecharam, - cega de uma vez. A razão pouco a pouco escampou (...) Se misturavam animalidades e invenções geniais. E o orgasmo. Adquirira enfim uma alma vegetal. E assim perdida, assim vibrando, as narinas se alastraram, os lábios se partiram, contrações, rugas, esgar, numa expressão dolorosa de gozo, ficou feia"29

"... Abriu os braços. Enervada, ainda pretendeu sorrir. Não pôde mais. O corpo arrebentou. Fräulein deu um grito"30 (Andrade, 1995: 121-122)

        Começa pelos olhos. Cegueira de maravilhamento. Ritual encantado, tribal, primitivo. Aos poucos, percebe-se música diferente, "animalidades" - a alemã Fräulein perde a cor branca, esquálida, mistura-se com o verde da natureza, adquire "alma vegetal" para se deformar: narinas crescem, lábios partem-se, fica "feia", faz "careta para o tempo". Gozo de corpo que não se agüenta, se abre, se amplifica, "esbofeteia o tempo" e grita. Grito contínuo, cantos de vozes latinas, africanas, germânicas, nipônicas, reverberando em mil direções.
        Fräulein constrói mundo com seu grito que anuncia nova realidade. É universal na expressão porque é humana, pequenina na amplitude. Deforma, urra, assusta, quando se projeta mundo afora. Nascimento e morte momentânea, gozo aberto ao tempo, movimenta História. É dionisíaca, volta à origem da tragédia, segreda com o universo, floresce verdades.
        Amar, Verbo Intransitivo sofre influência direta do Expressionismo alemão, vanguarda européia identificada na obra de Mário de Andrade, por ele mesmo, e por muitos estudiosos e críticos da literatura. Ao contrário do Impressionismo, é movimento de dentro para fora, projetando-se sobre o real, deformando-o e recriando-o. As duas tendências estéticas expressionistas existentes no início do século, apontadas por Argan (1992: 227), foram o francês fauve ("feras") e o alemão Die Brücke ("a ponte") - esta última fundamental à estética andradiana.         "Para os artistas da Brücke, a solução é um romantismo entendido como condição profunda, existencial do ser humano: a ânsia de possuir a realidade, a angústia, porém, de ser arrastado e possuído pela realidade que se aborda" (Argan, 1992: 228). Esta bela imagem procura dar conta do ecletismo e da dialética da contradição histórica entre clássico e romântico, em um tempo em que a sociedade optava por uma agudização da divergência entre cultura latina e cultura germânica. Essa mesma divergência é ponto norteador de Amar, Verbo Intransitivo. Elza, alemã, e Tanaka, o criado japonês, são caracterizados pelo narrador como tigres lembrando feras, do nome da vertente francesa do movimento expressionista. Ambos divergem dos padrões brasileiros, estranhando a latinidade tão sem objetivação.
        Os expressionistas alemães, ligados à crônica da vida, recuam à origem das coisas e, primordialmente, à origem da linguagem, na qual "não há palavras que tenham um significado, mas apenas sons que assumem um significado" (Argan, 1992: 237). Som inarticulado, gênese, ação antes de representação, características expressionistas tão bem incorporadas por Mário ao idílio amoroso. Ruptura de silêncios, forma disforme a ser trabalhada/talhada depois. A beleza transforma-se em feiúra, fealdade, aumentando-se, diminuindo-se, mudando dimensões.
        "Há, portanto, um duplo movimento: queda e degradação do princípio espiritual e divino que, fenomenizando-se, une-se ao princípio material (...) Esse conflito ativo determina o dinamismo, a essência dionisíaca, orgiástica e, ao mesmo tempo, trágica, da imagem e seu duplo significado de sagrado e demoníaco" (Argan, 1992: 240). É, justamente, no princípio do gozo, momento sagrado de encontro com a natureza, que Fräulein fica feia, estranha, deformada. O deus encarcerado, Dioniso ardendo nas entranhas, ultrapassa a pele - contato com o real - projeta significado, inscreve-se na vida. O corpo arrebenta, rompendo o limite entre realidade e fantasia, Fräulein e mundo, sujeito e objeto.
        O grito, quadro de Edvard Munch, datado de 1893, é apreendido por Mário em sua maior expressão: além de causar forte impressão no observador/leitor, rouba-lhe a compreensão de mundo, provoca vazio, angústia refletida. "O fato realmente importante não é a descrição, inquestionavelmente aguda, de uma situação psicológica; é a concepção extremamente nova do valor, da função do símbolo, que é sempre o signo de uma proibição, de um tabu social ..." (Argan, 1992: 258). A morte e o sexo igualam-se em proibição e em falta de sentido.
        Causa estranhamento no quadro de Munch, a imensidão de linhas desconexas, revelando a continuidade, a permanência da instabilidade. Causa estranhamento a palavra distorcida em grito da alemã, professora de amor, que só consegue gozar em aberto intransitivamente. Mãos na face, imagem contorcida em sentimento sem identificação, podendo ser traduzida em fome de amor, morte ou excesso de vida. Figura sem sexo, quase desumana, sem definição, ecoa longe, quase sem sustentar a cena. Confude-se com o espaço, salta do quadro/livro, fragmentos imprecisos de deus encarcerado. O grito de Munch e de Fräulein podem ser lidos como um só grito, ou como múltiplos sons sem mistério e, ao mesmo tempo, como sussurros de revelação.

CONCLUSÃO

        Mesmo acreditando, ou fingindo acreditar, não ter dado uma contribuição à sua época, desconfiando de seu passado, sentindo-se hiperindividualista, Mário de Andrade foi muito além do que podia supor. Foi leitor não só de seu tempo, mas da alma feminina e, mais ainda, da alma humana; dominou, criou linguagem universal, reflexo de agoras, sempre presentes.
        Desejoso de habitar em uma espécie de terceira margem, ser objeto e sujeito, artista e crítico, homem-da-vida e homem-do-sonho, pesquisador e escritor, e assim indefinidamente, construiu uma obra tão coletiva quanto singular. A personagem Fräulein, de Amar, Verbo Intransitivo, é espelho do poeta, espelho que, por vezes, parece do avesso, versão feminina, em outras, é imagem mais que perfeita, sem ranhuras ou deformações desconhecidas.
        No idílio amoroso, Mário de Andrade revelou-se como quem entrega uma mentira, com certo sentimento de culpa perturbador, mas em tom confessional, de coragem sobre-humana. Desejando invasão, assim como a alemã, professora intransitiva, ensinou que ler é nunca esgotar significado, é espaço que se sabe sem nunca saber. Mário conhecia, ou talvez pressentia, o enigma da feminilidade.
        Fräulein, a professora de amor sem reticências, transitória mas nunca transitiva, é Mário reticente sem amor, clamando por liberdade, mentindo não querer entrar para a História, apesar de admitir vaidades permanentes. Pesquisador incansável, confundia-se com o Brasil - país que buscava identidade -, buscando a sua própria identidade ou a falta dela. Constatação de vazio que garantia segurança. Contestação de gritos, sublimação por letras. Sabia da dor dos símbolos e de sua inutilidade. Arte era mais que sinônimo de deformação. As vanguardas não entravam pela janela ou pela porta dos fundos. Desses lugares, saíam personagens inacabados de poesias incompletas. Os melhores.
        Conhecedor da estética expressionista, estudioso da cultura alemã, Mário cruzou O grito de Munch com o grito da professora, gozada pela natureza, reconstruindo realidade. Fragmentos imprecisos de deus encarcerado, figura híbrida, confundida com o espaço, Fräulein inverteu sentido: gozou em Mário e em todos nós. Mário gritou: Fräulein!
Fräulein: grito de Mário.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Mário de. Amar, Verbo Intransitivo. 10ª ed. Belo Horizonte, Villa Rica, 1995.

_________ Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1974.

_________ A lição do Amigo. Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.

_________ Mário de Andrade, cartas a Anita Malfatti. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. Tradução Denise Bottmann e Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

KIEFER, Charles. Mercúrio veste amarelo - a poética nas cartas de Mário de Andrade. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1994.

KOSSOVITCH, Elisa Angotti. Mário de Andrade, plural. Campinas: Editora da Unicamp, 1990.

LACAN, J. Séminaire de l' École Pratique des Hautes Études, École Normale Supérieuse, 1964-1967.

LECLAIRE, Serge. Psicanalisar. 2ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1986.

LOPEZ, Telê Porto Ancona. "Uma difícil conjugação" In: Amar, Verbo Intransitivo. 10ª ed. Belo Horizonte, Villa Rica, 1995.

SANTIAGO, Silviano. "A permanência do discurso da tradição no modernismo" In: Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.




1 KOSSOVITCH, Elisa Angotti. Mário de Andrade Plural. Campinas: Editora da Unicamp, 1990, p. 35.
2 ANDRADE, Mário de. "O movimento modernista" In: Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1974, p. 252.
3 SANTIAGO, Silviano. "A permanência do discurso da tradição no modernismo" In: Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p.107.
4 SANTIAGO, Silviano (1989), op.cit, p.97
5 SANTIAGO, Silviano (1989), op.cit, p.105.
6 ANDRADE, Mário de. A lição do amigo. Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, p.6.
7 Id, ibid.
8 ANDRADE, Mário de (1974), op.cit, p.254.
9 Id, ibid.
10 Id, ibid.
11 ANDRADE, Mário de (1974), op.cit, p.253.
12 ANDRADE, Mário de (1974), op.cit, p.254.
13 Id, ibid.
14 KIEFER, Charles. Mercúrio veste amarelo - a poética nas cartas de Mário de Andrade. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1994, p.62.
15 ANDRADE, Mário de (1927). Amar, Verbo Intransitivo. 10ª ed. Belo Horizonte: Villa Rica, 1995, p.147.
16 ANDRADE, Mário de (1927), op.cit, p.53.
17 Id, ibid.
18 Id, ibid.
19 ANDRADE, Mário de (1927), op.cit, p.19.
20 ANDRADE, Mário de (1927), op.cit, p. 60.
21 ANDRADE, Mário de (1927), op.cit, p.64.
22 ANDRADE, Mário de (1927), op.cit, p. 57/58.
23 LACAN, J. Séminaire de l'École Pratique des Hautes Études, na École Normale Supérieure, 1964-1967.
24 LECLAIRE, Serge. Psicanalisar. São Paulo: Perspectiva, 1986, p.64.
25 ANDRADE, Mário de (1927), op.cit, p. 133.
26 ANDRADE, Mário de. "Amor e Medo" In: Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1974, p.228.
27 ANDRADE, Mário de (1927), op.cit, p.77.
28 ANDRADE, Mário de (1927), op.cit, p.115.
29 ANDRADE, Mário de. Amar, Verbo Intransitivo. 10ªed. Belo Horizonte, Villa Rica, 1995, p.121.
30 ANDRADE, Mário de (1927), op.cit, p.122.
31 ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. Tradução Denise Bottmann e Federico Carotti - São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.227.
32 ARGAN, Giulio Carlo (1992), op.cit,p.228.
33 ANDRADE, Mário de (1927), op.cit, p.97.
34 ARGAN, Giulio Carlo (1992), op.cit, p.237.
35 ARGAN, Giulio Carlo (1992), op.cit, p.240.
36 ARGAN, Giulio Carlo (1992), op.cit, p.258.